quarta-feira, 23 de março de 2011

Sudro

memórias de um homem esquecido

Fiquei pensando, gélido, com uma estátua de São Petersburgo, parecia que meu sangue havia engrossado, e todo movimento que exercia tinha suas conseqüências, dores abdominais rondavam-me, uma tromba d’água parecia mergulha-me num subterfúgio, eu estava me sentindo mais inútil que um Sudro. Estava irrequieto, a madrugada passava lenta, tão lenta como o veneno mais cruel e aparentemente tudo isso iria circular por horas intermináveis. Abri uma garrafa de uísque e fiquei embriagando-me, era o único ato que parecia ser coerente com o que eu estava pressentindo, eu tomava longas doses, enchia minha boca toda, sentia o álcool corroer o céu de dentes e engolia, literalmente, tudo de uma única vez. Era a única coisa que me fazia sentir mais quente. Era o cobertor mais quente que eu poderia conseguir.

domingo, 20 de março de 2011

Eu apenas concluí que ela escorregava por entre as cinzas

Memórias de um homem esquecido

Pensei em Alice, no que ela estaria fazendo, mesmo sabendo que o nosso amor era presente, sincero, parecíamos estar tão distantes um do outro, um muro de Berlim parecia nos dividir, era como se os nossos corpos permanecessem juntos e as nossas cabeças tivessem sido desgrudadas uma da outra; sentia-me sozinho demais, pensativo demais e via nos olhos de Alice que ela queria outras coisas pra sua vida, coisas essas que eu não era capaz de dá-la. Sentia-me traído pelo meu próprio sentimento, era um amor transformado em algodão, um sentimento amorfo, uma sensação vazia que não tinha mais necessidade de se chamar de sonho.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Conto - O dia em que apresentei o ponto final

Às vezes existe tanto desespero, tanta casca saindo das minhas costas, que esqueço que tudo é uma questão de virar uma página; e a página passada, acredite, foi umas das melhores proezas, uma das melhores coisas que um homem poderia ter lido, provado. Não me acostumei a esquecer aquelas linhas retas, acentuadas, coloridas de uma libido, de uma insinuação que canta, encanta e me mordem as orelhas. Julguei que seria a minha mulher e que a eternidade cavaria as nossas covas rasas. Um dia perdi os compassos da minha própria vida, meus parágrafos rolavam, descambavam, e o que seria um respiro se tornou em um grande abandono...! Tudo por causa dele, que arrancou de mim a minha página predileta, me fez sofrer e cair nesse desespero infindo de querer arrancar os olhos. Roubou, ele, a personagem principal do meu livro, me fez trocar a minha vírgula pelo seu ponto final.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Conto – As Borboletas de Muzo

   Fecho os meus olhos e lembro-me da exemplar exposição do seu olhar, verde e esplendorosamente singelo, o poder de toda flora carregado nos seus olhos resplandecentes de mulher. Meu vôo é muito mais do que uma aproximação da realidade é o mito que nos acoberta nos devidos sonhos; dentro deles sou complacente com o amor sugerido, revigorado pelos olhares e inoportunas sensações de formigamento em meu peito.
   Sua chegada era programada, depois de anos de viagem. Partiu, feito louca deixando tudo e todos pra trás. Seu desejo era descobrir o mundo, encontrar-se no desconhecido e aprender com culturas distintas a melhor maneira de se definir. Desde criança, era notável sua aptidão e seu real envolvimento em se despir das coisas que a sufocava. Ela saiu de casa com a esperança de preenchimento do seu espírito, pois acreditava que algo maior era reservado pra ela no imaginário particular do seu mundo.
   Quando ela fugiu da casa da minha tia, eu nem entendia seus reais motivos, talvez minha idade inferior e a falta de maturidade foram determinantes pra que isso ocorresse. Pra ser sincero, nem gostava muito dela quando criança, talvez por meus pais acharem que ela era meio maluca. Não sei. Só sei que sentia um pouco de receio, algo que me repelia da minha prima.
   Uma quinta-feira chegou à notícia que ela havia partido, sem rumo, sem uma estrada predefinida. Foi um burburinho só, uma vergonha encarecida no lúgubre da alma da minha tia. Deixou apenas um bilhete falando que voltaria um dia, e que mandaria inúmeras cartas pra contar seus passos e inquietar um pouco o coração da sua mãe que tanto amava.
   Pra mim suas cartas eram verdadeiras sagas, repletas de aventuras e fantasias. Comecei a admirá-la de tal forma, denominando-a como a aventureira dos meus sonhos. Com os anos fui esquecendo-me do seu rosto. Mas a cada capítulo, a cada versículo, a cada sensação de liberdade que ela me transmitia; era criado em mim centenas e inúmeras versões de uma mesma mulher.
   A última carta dizia que voltaria em breve, que não agüentava de tanta saudade dos seus entes queridos. No momento eu senti certo pavor, um medo que escondia uma felicidade inquieta. Como estará ela agora? O que direi? O que farei? A curiosidade me matava a cada dia. Eu a esperava, procurando o desfecho de vê-la, de senti-la. Mas os dias iam pingando frustrações e eu as escrevia com o pensamento nela. Como será a sensação?
   O engraçado é que tudo acontece quando menos se espera. Lembro-me como se fosse hoje ela chegando à casa da minha tia. Usava uma fita vermelha prendendo o seu brilhoso cabelo negro, um chapéu longo e um poncho dos Andes. Pra ser sincero não reparei nada disso assim tão rápido, eu fiquei fascinado por aquela mulher de olhos verdes. Minha prima.
   A verdade é que aqueles olhos continham cristais romboédricos, de uma magia indescritível. Brilhavam como gotas de azeite. Aqueles olhos oblíquos. Feitos de uma pedra não talhada. Pareciam aquelas grandes esmeraldas da cidade de “Muzo”, que eu como químico e admirador do estudo da mineralogia soube ver e contempla-los com grande entusiasmo.
   Fiquei surpreso por seu modo relaxado e dado. Sem nenhuma preocupação veio e me deu um abraço daqueles. Gostoso. A silhueta do seu corpo, o melhor desenho que Deus podia ter elaborado, a obra perfeita. Meu péssimo agosto dava lugar para um quente e acolhedor setembro, presente nas curvas do corpo daquela mulher idealizada.
   Em questão de segundos parecíamos velhos confidentes. Eu sempre reclamando da minha vida. Dizendo que estava cansado de ser amorfo... Que a solidão é algo presente em meu espírito, que os meus sentidos foram aprisionados em uma cauda de estrela e levado pra não sei onde. Blá, blá, blá. Com ela tudo era diferente, ela era a lua e olhava tudo de cima sempre com maestria, sabia dentro de suas concepções que não há lógica em escrever, mas virtudes em se perder pra se encontrar depois. Uma mulher mágica que me chamava de anjo, o recipiente onde eu depositava meu amor gigantesco.
   De certa forma ela fazia parte de mim, vivíamos entre as fumaças dos cigarros e da degustação de vinhos baratos. Sempre nos perdíamos naquele silêncio momentâneo, o presságio configurado pela repentina troca de olhares. O amor estava nascendo e a tentação expelia a grande histeria de nos possuirmos logo, de uma vez...
   Não demorou muito pra sentirmos nossos sangues com laços familiares coagulados na loucura do desejo. Como descrever o sentir da encruzilhada das suas pernas?Não faço idéia. Só sei que fui absorvido dentro dela e minutos depois filtrado, como se tivesse sido acompanhado passo a passo no precipitar de minhas asas. Na minha concepção o erro é envolvente como nasceu para ser; e era na certeza que se criou entre nós.
Um dia ela me disse...
   Sempre soube que partiria, ingenuidade minha achar o contrário. Eu gostaria de não sentir saudades, mas é algo que parte de dentro de mim e não tem como conter. Eu não poderia prendê-la, pois ela fugiu do destino mais certo... Que era estar comigo. Seus olhos significavam as mais belas borboletas, pois voavam sem destino certo... E sei que tais borboletas são muito mais bonitas quando podem exalar para o mundo toda a sua liberdade.